sexta-feira, 25 de abril de 2014

O dia em que a poesia desceu à rua

 «Valeu a pena ter vivido para poder escutar o espontâneo grito unânime de «Liberdade!» que, longamente reprimido, se soltou de repente de todas as gargantas no dia 25 de Abril de 1974, sobressaltando os corações e acordando-os (quem poderia ter acreditado?) de um sono letárgico de meio século. E tão frágil e inocente era essa unanimidade que poucos dias depois já se havia quebrado, cada um entrincheirado nas suas convicções e nos seus interesses procurando apropriar-se daquilo que, durante uma breve eternidade, foi de todos. Sophia chamou-o, a esse dia, de «dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio». E só a palavra poética pode, de facto, alcançar na inesperada e desmesurada natureza de um dia assim, um dia em que a poesia, o que quer que a poesia seja, desceu à rua e se fez confusamente palavra, abraço, encontro, comum identidade. Desse dia guardo principalmente duas memórias: eu descendo a Avenida dos Aliados, no Porto, arrastado por uma multidão aturdida e semovente, dando a mão à minha mulher grávida e com a filha mais velha aos ombros agitando um cravo vermelho e gritando, também ela, «Liberdade! Liberdade!» sem saber o que dizia; e a imagem de um grupo de polícias (os únicos polícias que vi nesse dia, todos os outros se haviam misteriosamente sumido) tentando agarrar um miúdo de 9 ou 10 anos que os apedrejara e se escondera debaixo de um autocarro estacionado diante do Palácio dos Correios, o polícia graduado gritando à criança: «Vem cá para fora, cobarde!»

 Depois foi o que se sabe, uma sucessão de traições. O destino dos revolucionários é serem os cornudos da História, traídos pelos companheiros mais próximos e estes traídos, por sua vez, por outros traidores. E, como canta Jacques Brel, «nous voilà ce soir», porque as revoluções, repetindo Carlyle na sua História da Revolução Francesa, são sonhadas por apaixonados, realizadas por homens determinados, mas quem delas se aproveita são os oportunistas de todas as espécies.

 Assim foi (e como poderia não ter sido?) com o 25 de Abril. Os sonhos colectivos são animais tímidos, transformam-se facilmente em fé transbordante mas têm muitos inimigos: o tempo, a realidade prática, a sua própria desrazoabilidade. Mais tarde ou mais cedo recolhem-se a lugares inacessíveis do coração, como uma queimadura que dói de vez em quando, cada dia menos, ou então morrem sufocados sob o peso institucional.

 Que resta hoje desse dia «inicial, inteiro e limpo»? Memórias: uma canção (Grândola, Vila Morena), nomes, a maior parte de gente morta (Salgueiro Maia, Zeca Afonso, Melo Antunes...), e dissensão, e calúnias, e falsidades. Os vampiros voltaram, pousando nos prédios, pousando nas calçadas, «novos ratos mostram a avidez antiga», e o arbítrio, sob a forma de lei, reconstruiu pacientemente a mediocridade, a resignação, a desesperança, o medo.

O que aconteceu? Sophia explica-o melhor do que eu seria capaz:
 «É certo a esquerda fez erros / Caiu em desmandos confusões praticou injustiças //
Mas que diremos da longa tenebrosa e perita / Degradação das coisas que a direita pratica? //
Que diremos do lixo do seu luxo - de seu / Viscoso gozo da nata da vida - que diremos / De sua feroz ganância e fria possessão? //
 Que diremos de sua sábia e tácita injustiça / Que diremos de seus conluios e negócios / E do utilitário uso dos seus ócios? //
Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos / De suas fintas labirintos e contextos? //
Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez / Desfigurou as linhas do seu rosto //
Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita / Degradação da vida que a direita pratica?»

Crónica de Manuel António Pina, DN